domingo, 26 de fevereiro de 2017

Desidentidade

Há algo de único na opressão que as fêmeas sofrem, isso é muito pouco abordado mas é ao mesmo tempo fundamental para compreender porque essa opressão não pode ser tratada como as outras e porque a identidade tem um papel diferente nessa opressão.

O proletariado é definido pelo seu trabalho não pela exploração dele. É um orgulho para o trabalhador do campo e para o trabalhador da cidade que produzam e construam a sociedade. Sem o capitalismo o trabalhador ainda é trabalhador, o trabalhador não depende do capitalismo para ser chamado trabalhador. Não é o capitalismo que instituiu o trabalhador, o trabalhador existe antes do capitalismo, o trabalhador existe pra além do capitalismo, o trabalhador é mais que o capitalismo.

O negro tem uma identidade enquanto negro, tem uma ancestralidade, tem terras, línguas, religiões, vestes, músicas e muito mais. O negro, assim como outros povos colonizados, tem algo que pode proteger pois a identidade que o branco impôs não é o que o define, o negro existia antes do branco, o negro existe pra além do branco, o negro é mais que o branco. Ainda que o branco destruísse toda uma cultura os sobreviventes do massacre tem uma história para contar e para a qual retornar ou mesmo reconstruir ou reinventar. Há uma identidade.

Certa vez li a frase "Os negros não são descendentes de escravos", o contexto da frase é que antes de serem escravos os negros eram um povo. A mulher porém é escrava, é precisamente isso que define a mulher. A mulher não tem uma história que antecede sua opressão, a história da mulher é a história da sua opressão e da sua sobrevivência. Mulher não é o nome de uma identidade, é o nome de uma opressão. Não existe uma cultura da mulher, a cultura da mulher é um épico de sobrevivência, a primeira história heroica escrita.

A base da opressão da mulher é a identidade, ou mais especificamente a ausência dela. A mulher é um não-homem, é um objeto de desejo do homem, uma puta a ser penetrada, um útero a ser fecundado, uma esposa a ser explorada, uma mãe pra cuidar do mundo e uma velha pra ser descartada como uma louca coitada quando seu prazo de validade acabar. Como nada foi criada, como nada vive e como nada morre.

O homem não detém meios de produção ou armas superiores com as quais ele mantém a mulher no lugar de oprimida, mas o homem manipula o discurso que sustenta a ilusão de que a mulher é diferente dele. O discurso hierárquico do homem-ego-gente que submete a mulher-coisa-objeto. A hierarquia de gênero se mantém através de todas as raças e modos de produção porque ela, ao contrário dessas outras, é uma ilusão.

A materialidade da opressão de gênero é o discurso do opressor, ainda que a mulher tenha acesso às mesmas armas que o homem o ódio é propriedade privada do homem e o perdão da mulher, ela vai sempre perder. Toda e qualquer ideologia que sustenta ou reforça a diferença entre os gêneros é uma ideologia de manutenção da opressão contra a mulher. Ser trabalhador é a identidade do trabalhador, ser negro é a identidade do negro, mas ser mulher não é a identidade da mulher, ser mulher é justamente a anulação da identidade do ser que é "mulherizado".

A mulher não é oprimida pelo homem enquanto mulher, não há mulher, mulher é apenas um sinônimo para não-gente, para anulação, para inexistência, para desidentidade. Existe todo o tipo de variação anatômica entre os seres humanos, dos tipos mais diversos, mas a vagina foi escolhida como critério para dissolver metade dos seres humanos até sobrar só a submissão ao desejo do falo. Assim a maior força da mulher é criar uma identidade que se oponha a tudo isso, é restaurar e potencializar aquilo que tentaram apagar e com a mesma base que usam pra apaga-la, seu corpo.

O resgate da identidade da mulher como ser humano é a sua arma de luta contra a opressão e sua arma de luta contra a opressão é o resgate da sua identidade como ser humano. Uma identidade que não exista em relação ao desejo do homem, que não tenha como referência o desejo do homem, nem para o conformar e nem para o deformar, mas para abandonar. É necessário a separação e o distanciamento do homem para que essa distância abrigue um vácuo e esse vácuo torne o discurso do homem mudo.

Assim, o transativismo e o queer são necessariamente inimigos da luta da mulher pois são diretamente opostos à libertação da mulher. Essas movimentos querem trazer a ideia de mulher como a do negro e do trabalhador, como se a identidade imposta à mulher fosse de fato sua identidade, uma identidade da qual deva se orgulhar, ignorando completamente que essa identidade foi dada pelo opressor.

A mulher se orgulhar de ser feminina (feminilidade aqui no sentido do ritual de submissão imposto pelo patriarcado) não é como o negro se orgulhar dos Orixás ou trabalhador se orgulhar da contribuição que ele traz para a sociedade, seria como o negro se orgulhar de grilhões ou trabalhadores se orgulharem de um salário miserável. Aceitar que exista uma identidade feminina não é como aceitar uma identidade de negro ou de trabalhador é aceitar que existe uma identidade de escravo ou de explorado.

Um movimento que queira validar e fortalecer a desidentidade chamada mulher como se fosse uma identidade é um movimento patriarcal que existe apenas para roubar, matar e destruir.

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